Quando eu era pequena, passava às vezes um velho louco e vagabundo a que chamavam o Búzio. O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era baloiçado como o andar de um marinheiro ou de um barco. Os seus olhos, como o próprio mar, ora eram azuis, ora eram cinzentos, ora eram verdes, e às vezes mesmo os vi roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas.
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O Búzio aparecia ao longe. Via-se crescer dos confins dos areais e das estradas. Primeiro julgava-se que fosse uma árvore ou um penedo distante. Mas quando se aproximava via-se que era o Búzio.
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O Búzio chegava de dia, rodeado de luz e de vento, e dois passos à sua frente vinha o seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pêlo grosso, encaracolado e comprido, e o focinho preto.
E pelas ruas vinha o Búzio com o sol na cara e as sombras trémulas das folhas dos plátanos nas mãos.
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Sophia de Mello Breyner
1 comentário:
Quando eu era pequenino deram-me um búzio, e eu em cima da mesa o "púzio".
Mentira... mas vem-me à lembrança esta cantilena de criança ao ler este magnífico excerto de um conto da sempre presente Sophia.
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